segunda-feira, dezembro 04, 2006

«Amargo como a vida....»

Apontamento da reportagem «Sahara - A República da Areia», publicada em 1984 pelo jornalista Miguel Sousa Tavares:

«Mais morto que vivo, deixei-me cair em cima de um dos colchões que havia no chão e fiquei a observar, através das janelas da tenda - havia quatro, uma em cada canto -, as crianças que brincavam lá fora, à luz do luar.
Não sei quanto tempo terei passado assim, até ver entrar uma mulher nova e muito bonita, que se foi sentar no chão no centro da tenda.
Havia aí um pequeno fogareiro e um bule e foi então que assisti, pela primeira vez, a um ritual que se iria repetir interminavelmente durante os dias seguintes: a preparação do chá.
Começam por fazer alinhar uns seis copos pequeninos, e põem a ferver no lume um punhado de folhas de hortelã-pimenta esmagadas. Quando a hortelã-pimenta ferve é a vez de lhe juntar o chá e voltar a ferver. Após a segunda fervura, o conteúdo do bule é despejado para o primeiro copo e deste passado sucessivamente para os restantes, despejando-se de muito alto, com uma pontaria milimétrica. Quando o chá chega ao último copo pouco mais é do que espuma. Volta então para o bule, onde é fervido terceira vez, juntando-se-lhe mais água.
Depois da terceira fervura é finalmente servida a primeira rodada de chá. Reza a tradição que quem aceitar a primeira tem de aceitar também as duas seguintes, sob pena de ofender gravemente o seu anfitrião. Bem entendido, também não será propriamente delicado recusar a primeira, pelo que a opção é, pura e simplesmente, aceitar todas.
A segunda e terceira rodadas são feitas a partir do mesmo chá, na mesma hortelã e do mesmo açúcar, juntando-se apenas de cada vez, um pouco mais de água. Por isso os sarauis costumam dizer que o primeiro chá é doce como o amor, o segundo suave como a morte e o terceiro amargo como a vida.
O chá completo demora cerca de três quartos de hora a ser preparado. Foi o tempo que ali estive, suspenso dos gestos medidos e lentos da rapariga, como se estivesse a assistir a um número de prestidigitação.»

In Grandes Reportagens - Amigos do Livro, Editores - 1985

2 comentários:

Margarida disse...

Simplesmente fabuloso!

ovelhamansa disse...

"Escorrega" mesmo bem este textinho do MST, como um chá quentinho num dia chuvoso! :)
Raquel